Conflito de retóricas e caráteres

- Pessoal, eu peço desculpas por estar incomodando ou até mesmo perturbando a viagem de vocês. Estão vendo aquela porta no fundo do ônibus? Entrar por aquela porta é crime, dá até 6 anos de prisão. É por isso que eu paguei a minha passagem. E, por ter pagado a minha passagem eu tenho o direito de estar trazendo estas informações pra vocês.
Por muitos anos eu fui usuário e até mesmo traficante de drogas químicas e até mesmo do álcool. Eu era conhecido no morro do Papagaio como Galeguinho do Capeta. Eu roubei, matei, estuprei, sequestrei e até mesmo atentei contra o nome do Senhor. Mas agora, graças a essa casa maravilhosa, chamada Lar Renascer de Novo, eu posso estar aqui pedindo a contribuição de vocês para ajudar mais jovens como eu a sair do mundo das drogas e até mesmo do álcool. Eu aceito dinheiro e até mesmo um vale-transporte que não vai fazer...

Percebendo ali a oportunidade, levantou-se do fundo do ônibus, e dirigiu-se ao mesmo público:

- Pessoal, eu sei que estou incomodando e por isso procurarei ser breve. Desde jovem, sempre me destaquei na escola, tendo, inclusive, participado da etapa nacional das Olimpíadas de Física. Graduei-me engenheiro em tempo recorde. Enquanto cidadão, sempre fiz até mais que a minha parte. Ando de ônibus para não emitir gases do aquecimento global e uso painéis fotovoltaicos na minha casa, consumindo, assim, menos energia elétrica. Pago meus impostos rigorosamente em dia. Sou um marido fiel e um pai presente. Nunca usei drogas, nem fiz mal a nenhum animal. Como vocês podem ver, eu mereço muito mais a vossa contribuição do que ele. Aceito chocolates no lugar dos vale-tranporte.

Ao deixar o coletivo, não tinha aumentado em um centavo suas posses.
Seu oponente, por sua vez, conseguiu arrecadar R$5,70, um vale-transporte e até mesmo um número de telefone de uma menina 5 anos mais jovem.

JUDAS

Seu Hamilton, morador antigo da rua 205, não gostou quando lhe disseram que naquele ano iria voltar a tradição do “Judas”. Lembrou com tristeza dos tempos passados, onde o “Judas” naquelas bandas sempre acabava em confusão e procurou Raimundão, líder do bairro, para desencorajá-lo.
De nada serviu sua empreitada, contou suas experiências de outrora para Raimundão, que fez ouvidos mouros e pediu tranqüilidade ao velho morador, argumentando que os tempos eram outros e o “Judas” até ajudaria a aproximar a população local.
Na sexta-feira da paixão quando já estava armado o circo, Seu Hamilton em sua janela ficou de longe e preferiu não participar. O boneco de Judas pronto, a população ao seu redor e muitos já o insultavam e batiam no boneco, quando Raimundão anunciou a leitura do testamento de Judas:
- Judas morreu, não tinha o que deixar, deixou a janela aberta para Paulo escapar.
Começou o burburinho no meio do povo.
- Judas morreu, não tinha o que deixar, deixou para Dona Cleide a vida dos outros para ela comentar.
A cada quinhão que Judas deixava, os ânimos se acirravam mais, até que o caldeirão explodiu:
- Judas morreu, não tinha o que deixar, deixou coragem para Tonhão se revelar.
Foi o estopim, Tonhão, furioso, correu em direção a Raimundão e lhe deu um soco, ameaçando de morte, tendo o povo de intervir para salvar a pele de Raimundão. No ano seguinte, decidiram abolir o Judas e elegeram Seu Hamilton líder do bairro. Passaram a escutar as sábias lições do seu velho morador.

Testemunho

Copiado do Orkut de uma certa menina:

"menina vc mora onde???
queria te conhcer pra gente conversa mais coisas sobre aquilo
i a buceta como anda? raspada ou cabeluda
bjus dps apaga esse depoimento"

Fantástico

Das desvantagens de não se ter acesso à Internet.
Escuto as reclamações de um rapaz negro da periferia de Salvador por não poder trabalhar ostentando seu corte de cabelo rasta. "Respeito é bom", clama repetidamente seu rap.
Inteiro-me sobre a promessa feita pelo ganhador do Big Brother a sua namorada e a vejo cumprida, na forma de um picnic. Em certo momento, ambos estão vestidos com roupas típicas do folclore alemão e falam com sotaque do interior paulista.
Acompanho um grupo de ativistas tentando hastear uma faixa sobre um edifício em construção. Obviamente impedidos, contentam-se em estendê-la sobre as areias da praia de Copacabana. "Ainda há tempo", lê-se. Chego à conclusão de que, quando não mais houver, isso não interessará a ninguém e continuarão dizendo a mesma coisa.
Sou informado de que no dia anterior, na mesma localidade, um grupo de pacifistas se deitou sobre a calçada exigindo o fim da violência. Intimamente, desejo que os bandidos entendam o apelo.
Relembro a inesquecível conquista do ouro de Fernando Meligeni no Panamericano de 2003. "Nem um diretor de cinema teria pensado numa final com tantos ingredientes dramáticos", ou algo assim.
Instruo-me mais a respeito do dia-a-dia de um zoológico. "O Brasil é o bicho", grita um grupo de crianças (tudo bem, isso, pelo menos, foi interessante).
Finalmente, a única informação desejada: Cabofriense 2 X 1 Vasco.
Depois de tantos sacrifícios, eu merecia mais.

Real Beleza

"Por muito tempo, a beleza vem sendo definida por estereótipos limitados e sufocantes...
... acreditamos que a Real Beleza está em diversas formas, tamanhos e idades".

Vi no cinema a nova campanha da Dove. Antes de começar o filme, dá-lhe adoráveis menininhas sardentas, japonesinhas encantadoras e moreninhas lindas que queriam ser loiras.
Queria ver mesmo era uma pessoa bem feia na tela. Sem nenhum dente na boca, morbidamente obesa ou simplesmente mal feita. Falar em aceitar um novo padrão estético e mostrar pessoas que já se encaixam no atual é fácil. Queria ver uma dessas doidas que ficam tirando a roupa na rua fazer alguém comprar sabonete.
Porque as fronteiras da beleza podem até ser expandidas. Mas, acredite, elas não são infinitas.

Amendoim com poesia

A poesia acabou? Não eram versos com rimas simples que originadas da boca de uma criança ganhavam ares de arte, transformando-se em R$ 1,00 na compra de um saquinho de amendoim? Algumas coisas ainda persistem, fica o amendoim e a pobreza; se esvai a poesia e a esperança na mente e no corpo dos mais velhos. Na dos mais novos, amendoim com poesia.