Crítica: "Cidade Baixa"
Triângulos amorosos são lugares geométricos mais que comuns não só no cinema, como também na literatura e no teatro. Difícil imaginar que um bom filme ainda se sustente com esse argumento. Bom saber que "Cidade Baixa", longa do relativamente experiente (ao menos como roteirista) Sérgio Machado não se trata disso. Ou melhor, não somente. "Cidade Baixa" é um triângulo amoroso entre uma prostituta e dois grandes amigos... na região portuária de Salvador!
Sempre achei Salvador uma das maiores cidades do mundo, mesmo sem conhecê-la o suficiente para afirmar isso (e muito menos todas as outras). No total, somando todas as vezes em que lá estive, devo ter passado aproximadamente duas semanas na capital da Bahia. Mas conhecer aspectos da vida soteropolitana como a Fonte Nova, as caminhadas na Orla, as praias imprestáveis (ao menos para quem está acostumado a Ilhéus), a maravilha da humanidade chamada Pelourinho (ainda mais maravilhosa depois de se conhecer lugares deprimentes como Ouro Preto) e a experiência cotidiana da Estação da Lapa foi suficiente para me tornar grande admirador da cidade. O fato de morar hoje numa cidade em que a crise de identidade e a choradeira por não ser tão importante quanto suas vizinhas São Paulo e Rio é parte da própria cultura local me ajuda a admirar ainda mais a auto-confiança da metrópole baiana.
O que faz de "Cidade Baixa" um filme desde já fundamental, finalmente, é Salvador. Finalmente, aí está Salvador! Tudo bem, uma parte da cidade. Não há, no filme, nem menção ao Aeroclube ou aos shoppings. Tudo se passa ali mesmo, na sujeira e na pobreza (mas não miséria) do cais. E está tudo ali e ali está aqui. É a Bahia suja mas não imunda, suja e fedendo a camarão. É a Bahia de verdade. E, por mais que Salvador não seja Bahia, a Cidade Baixa é. É a Bahia com seus sons, suas cores (nada mais verdadeiro que as casas e os barcos azuis e brancas de perto do porto, muito mais que o colorido do Olodum) e seus cheiros. E com seus tipos reais. O baiano de "Cidade Baixa" é o baiano de verdade, aquela figura que, junto com o carioca e o pernambucano, fornece o retrato mais próximo que se pode ter do Brasil usando-se apenas três figuras emblemáticas.
Se a caracterização é o ponto forte do filme, em alguns momentos o excesso de preocupação nesse sentido atrapalha e incomoda. "Um a Zero pro Vitória, gol de Obina" passa um pouco da conta...
Também me incomoda o excesso de câmera na mão. Novos diretores precisam entender que nem todos têm o talento suficiente para segurar o equipamento como um Lars Von Trier sem causar náuseas no público. E que o fato de a câmera estar apoiada às vezes num tripé não significa que as idéias estejam necessariamente ausentes da cabeça.
Outro detalhe desnecessário diz respeito à grande quantidade de tomadas documentais, in loco. Como se não confiasse na perfeita interpretação de seus protagonistas, Sérgio Machado a todo momento exibe imagens de baianas transportando roupas na cabeça, crianças correndo descalças, feirantes negociando nos mercados e velhas observando a vida do alto de sobrados. Como quem diz: "estão vendo? É tudo verdade". Não havia necessidade. Wagner Moura, em "Cidade Baixa", é o baiano em estado puro.
E é ele, na minha opinião, quem rouba a cena no filme. Ouví-lo falando com todas as gírias e palavrões do baianês verdadeiro é uma volta às origens para qualquer baiano exilado. A cada tirada incompreensível para os mineiros ao meu redor, eu ria alto na sala praticamente vazia. Auto-afirmação?
Sua autenticidade no papel contrapõe o um tanto aculturado Lázaro Ramos. Apesar de bom ator (embora, na minha opinião, super-valorizado por ter feito boa parte dos bons papéis do cinema nacional recente), é claramente perceptível seu sotaque muitas vezes contido, de quem tenta sufocar a forma de falar para torná-la mais palatável a seus interlocutores.
E vem da necessidade de manter a veracidade a qualquer prova uma das maiores sacadas do roteiro. Durante as primeiras cenas, quando as coisas ainda não estavam bem explicadas, detestei a escolha de Alice Braga para o papel simplesmente porque seu sotaque era irritantemente paulista. Até que é revelado: Karina, sua personagem, é de Vitória. Sim! Ao fazer sua personagem vir do estado provavelmente mais sem identidade do país, o filme a libera de tentativas de imitação da fala baiana que invariavelmente resultam em emulações constrangedoras do sotaque pernambucano.
Insisto tanto na questão da forma de falar porque acredito que, sem a caracterização perfeita que faz da região que retrata, este filme não precisaria nem mesmo existir. E o sotaque baiano, em "Cidade Baixa" é o que de mais perfeito se conseguiu atingir em termos de representação do povo. Não que a fotografia, as locações e até mesmo a sonoridade do filme sejam ruins. São magníficos. Mas, verdadeiramente, de nada adiantaria o retrato minucioso dos almoços entupidos de farinha sem falas como "Marinalva tem um rabão da porra, né não?". Um simples artigo definido feminino no início da frase colocaria tudo a perder. O personagem de Dois Mundos é a mais perfeita síntese disso. Sem exageros, vale o ingresso.
Roteiro discreto, boa direção, excelente fotografia, atuações magistrais e o mais perfeito trabalho de estudo pré-filmagem que já vi, fazem deste filme o melhor do cinema nacional num dos seus melhores anos. Ainda não vi "Cinema, Aspirinas e Urubus" nem "Crime Delicado", dos quais andam falando muito bem, mas acho que dificilmente eles podem chegar perto de pagar a sensação de volta pra casa que Sérgio Machado e sua equipe me proporcionaram por alguns instantes.
Com "Cidade Baixa", a Bahia finalmente se liberta da novela das nove. Posso afirmar que o estado está bem melhor assim.
Filme visto no Del Rey, Belo Horizonte, a 12 de Novembro de 2005
PS: texto dedicado a Cícero e Laurinha
Sempre achei Salvador uma das maiores cidades do mundo, mesmo sem conhecê-la o suficiente para afirmar isso (e muito menos todas as outras). No total, somando todas as vezes em que lá estive, devo ter passado aproximadamente duas semanas na capital da Bahia. Mas conhecer aspectos da vida soteropolitana como a Fonte Nova, as caminhadas na Orla, as praias imprestáveis (ao menos para quem está acostumado a Ilhéus), a maravilha da humanidade chamada Pelourinho (ainda mais maravilhosa depois de se conhecer lugares deprimentes como Ouro Preto) e a experiência cotidiana da Estação da Lapa foi suficiente para me tornar grande admirador da cidade. O fato de morar hoje numa cidade em que a crise de identidade e a choradeira por não ser tão importante quanto suas vizinhas São Paulo e Rio é parte da própria cultura local me ajuda a admirar ainda mais a auto-confiança da metrópole baiana.
O que faz de "Cidade Baixa" um filme desde já fundamental, finalmente, é Salvador. Finalmente, aí está Salvador! Tudo bem, uma parte da cidade. Não há, no filme, nem menção ao Aeroclube ou aos shoppings. Tudo se passa ali mesmo, na sujeira e na pobreza (mas não miséria) do cais. E está tudo ali e ali está aqui. É a Bahia suja mas não imunda, suja e fedendo a camarão. É a Bahia de verdade. E, por mais que Salvador não seja Bahia, a Cidade Baixa é. É a Bahia com seus sons, suas cores (nada mais verdadeiro que as casas e os barcos azuis e brancas de perto do porto, muito mais que o colorido do Olodum) e seus cheiros. E com seus tipos reais. O baiano de "Cidade Baixa" é o baiano de verdade, aquela figura que, junto com o carioca e o pernambucano, fornece o retrato mais próximo que se pode ter do Brasil usando-se apenas três figuras emblemáticas.
Se a caracterização é o ponto forte do filme, em alguns momentos o excesso de preocupação nesse sentido atrapalha e incomoda. "Um a Zero pro Vitória, gol de Obina" passa um pouco da conta...
Também me incomoda o excesso de câmera na mão. Novos diretores precisam entender que nem todos têm o talento suficiente para segurar o equipamento como um Lars Von Trier sem causar náuseas no público. E que o fato de a câmera estar apoiada às vezes num tripé não significa que as idéias estejam necessariamente ausentes da cabeça.
Outro detalhe desnecessário diz respeito à grande quantidade de tomadas documentais, in loco. Como se não confiasse na perfeita interpretação de seus protagonistas, Sérgio Machado a todo momento exibe imagens de baianas transportando roupas na cabeça, crianças correndo descalças, feirantes negociando nos mercados e velhas observando a vida do alto de sobrados. Como quem diz: "estão vendo? É tudo verdade". Não havia necessidade. Wagner Moura, em "Cidade Baixa", é o baiano em estado puro.
E é ele, na minha opinião, quem rouba a cena no filme. Ouví-lo falando com todas as gírias e palavrões do baianês verdadeiro é uma volta às origens para qualquer baiano exilado. A cada tirada incompreensível para os mineiros ao meu redor, eu ria alto na sala praticamente vazia. Auto-afirmação?
Sua autenticidade no papel contrapõe o um tanto aculturado Lázaro Ramos. Apesar de bom ator (embora, na minha opinião, super-valorizado por ter feito boa parte dos bons papéis do cinema nacional recente), é claramente perceptível seu sotaque muitas vezes contido, de quem tenta sufocar a forma de falar para torná-la mais palatável a seus interlocutores.
E vem da necessidade de manter a veracidade a qualquer prova uma das maiores sacadas do roteiro. Durante as primeiras cenas, quando as coisas ainda não estavam bem explicadas, detestei a escolha de Alice Braga para o papel simplesmente porque seu sotaque era irritantemente paulista. Até que é revelado: Karina, sua personagem, é de Vitória. Sim! Ao fazer sua personagem vir do estado provavelmente mais sem identidade do país, o filme a libera de tentativas de imitação da fala baiana que invariavelmente resultam em emulações constrangedoras do sotaque pernambucano.
Insisto tanto na questão da forma de falar porque acredito que, sem a caracterização perfeita que faz da região que retrata, este filme não precisaria nem mesmo existir. E o sotaque baiano, em "Cidade Baixa" é o que de mais perfeito se conseguiu atingir em termos de representação do povo. Não que a fotografia, as locações e até mesmo a sonoridade do filme sejam ruins. São magníficos. Mas, verdadeiramente, de nada adiantaria o retrato minucioso dos almoços entupidos de farinha sem falas como "Marinalva tem um rabão da porra, né não?". Um simples artigo definido feminino no início da frase colocaria tudo a perder. O personagem de Dois Mundos é a mais perfeita síntese disso. Sem exageros, vale o ingresso.
Roteiro discreto, boa direção, excelente fotografia, atuações magistrais e o mais perfeito trabalho de estudo pré-filmagem que já vi, fazem deste filme o melhor do cinema nacional num dos seus melhores anos. Ainda não vi "Cinema, Aspirinas e Urubus" nem "Crime Delicado", dos quais andam falando muito bem, mas acho que dificilmente eles podem chegar perto de pagar a sensação de volta pra casa que Sérgio Machado e sua equipe me proporcionaram por alguns instantes.
Com "Cidade Baixa", a Bahia finalmente se liberta da novela das nove. Posso afirmar que o estado está bem melhor assim.
Filme visto no Del Rey, Belo Horizonte, a 12 de Novembro de 2005
PS: texto dedicado a Cícero e Laurinha
2 Comentários:
Ainda não vi o filme... possivelmente não vai passar aqui no Arraial de Tabocas
Passem lá no Caxassa Filosofal.
Entrevistei ACM!
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